Sonambulismo, Ópera & Cinema; texto de apresentação de A Rainha da Noite
por Pedro A. Almeida
Texto lido na estreia do filme no Estação NET Botafogo 1, dia 04/07
Busquei apreender, cinematograficamente, da Ópera a primordial regulação da ação dramática pela música. Na ópera, a música é por natureza hipnótica e a convenção no libreto é transparente demais para que o espectador se engaje com o drama num nível puramente racional — fora a entonação lírica do canto, que torna palavras apenas sons prolongados por lógica essencialmente musical. Com isso, todo suspense é morto na ordem do texto e revivido na ordem da música. A Ópera é, então, indução poética ao sonambulismo, desde os primeiros compassos da abertura até os acordes finais: um efeito pré-Wagneriano, pré-Gluckiano, de origem barroca. De semelhante maneira um filme potencialmente regula seu drama em claro-escuro rítmico por meio da encenação e montagem; música feita com a luz.
Uma ópera de Mozart é um oceano cristalino, profundo e vivo: por mais que possamos reter temporariamente algumas gotas num copo d’água, em forma de pretensas certezas na colocação canônica-ocidental, as gotas evaporam e depois chove tempestade sobre nossas cabeças, água retornando ao mar revolto. Em uma dessas tempestades, enquanto revisitava a Flauta Mágica pela concepção musical radical e contemporânea do maestro René Jacobs, em gravação feita com instrumentos da época de Mozart, algumas gotas desse vasto oceano me sugeriram uma imagem baseada no drama simbólico e inconcluso da princesa Pamina e de sua mãe, a “Rainha da Noite”.
No segundo ato da Flauta Mágica, a ópera ganha ares de oratório. Sobressai-se um estranho aspecto místico: nebulosa propaganda maçônica se manifesta em cenário infantil de contos de fada; efeito transfigurante e obscuro intensificado principalmente com o inevitável esvaziamento dos signos no passar das gerações. Desses mistérios do libreto de Schikaneder extraí algumas imagens, não mais com intuito diretamente simbólico e moral como no texto original, e sim como forma de redução da iconografia da ópera a alguns de seus elementos essenciais, apenas um fio de ariadne no enorme labirinto: instantâneo da infância perdida, num conto de fadas interrompido pelas sombras solenes do rito.
Sugeri ao compositor Paulo Villaça que deformasse melodias coloridas e famosas da partitura da ópera e nela procurasse harmonias secretas, para criar uma atmosfera musical sombria, crua e minimalista, de sons sintetizados. Achar minimalismo e crueza em Mozart não é tarefa fácil. A essa ideia devemos créditos a Michael Nyman, trabalhando conforme sugestão de Peter Greenaway, na deformação transcriadora de quatro compassos do segundo movimento da Sinfonia Concertante k.364 de Mozart — trilha sonora fabulosa do filme Afogando em Números.
Ao iluminismo radical do libreto, em sua marcada dialética entre luz e trevas, respondi borrando os limites entre noite e dia, sonho e vigília, e temperando o drama das ruínas personificadas de um soneto de Percy Shelley — que associei por antítese ao templo imóvel e sagrado de Sarastro, onde os humanos se eternizam como Deuses — com a denegação suspensiva da ação dramática no romance A Vênus das Peles de Sacher-Masoch: efeito hipnótico, semelhante aos princípios formais da ópera-seria, que causa o adiamento sucessivo do clímax e o consequente esfriamento do suspense.
E o clímax tardio do filme vem disperso no amanhecer, milagre diário em cujo longo transcurso, nas palavras de Goethe, nenhum desejo deve ser realizado, nenhum desejo...
O resultado, acredito, talvez soe mais como música de câmara do que como ópera — música de câmara com melodias de ópera (como as variações de Beethoven, para piano e violoncelo, de duas árias da Flauta Mágica). De qualquer forma, é música da luz tocada por uma equipe pequena, formada inteiramente por jovens apaixonados e já imersos na máquina compartilhada dos sonhos lúcidos chamada cinema.
Então, agradeço à equipe, sobretudo ao diretor de fotografia Vinícius Dratovsky, ao montador Luís Fuks e ao compositor Paulo Villaça; sem os quais não teria sentido filme e vida — pois filme é vida e vida é filme.
Agradeço às atrizes Camilla Tavares e Raquel Maia, por conceberem, partilharem e fantasiarem a minha fantasia.
Agradeço a Júlio Bressane, por sua presença no filme e seu cinema primordial e sonâmbulo, sem dúvida um dos mais importantes e originais do mundo inteiro.
Agradeço também ao diretor Jean-Pierre Ponnelle por sua instigante associação imagética entre ópera e escultura no ópera-filme de La Clemenza di Tito: filme de estátuas-vivas cantando glória em uma Roma em ruínas.
Agradeço principalmente a Mozart, de cujas obras indomáveis e eternamente jovens pode-se tirar mil oceanos e filmes.